domingo, 11 de fevereiro de 2007

Leituras jurídicas de bolso

No âmbito das temáticas da Justiça e movido pelo interesse em procurar saber mais um pouco sobre intervenções públicas de nomes conceituados e sabedores das matérias em causa, lembrei-me de consultar publicações antigas.
Deparei com grande número de artigos em revista, alguns deles pequenos ensaios e outros, meras transcrições de intervenções públicas da autoria de nomes conhecidos e outros nem tanto.
A prova recolhida, evidencia a importância que sempre se deu a certos temas da Justiça, em certos meios da magistratura, advocacia e mesmo universitários, com grande défice de intervenção destes últimos.
Assim, como exemplo, transcrevem-se aqui os temas e a localização de artigos para quem estiver interessado, mormente jornalistas apressados e que assim podem reflectir antes de escrever e ainda para todos aqueles que ignorando esta área de intervenção cívica, vão formando ideias pelas letras gordas do papel de jornal, engrossando o caudal de quem anda mal informado. Há muitos anos, uma editora de livros de bolso, lembrou-se de um slogan de propaganda do produto livro: “quem não lê, chapéu!”
Leia-se, então:

1. “Gozam os magistrados do direito à greve?”- pequeno artigo de meia dúzia de páginas, muito bem recheadas e documentadas legalmente, da autoria de Francisco Liberal Fernandes, assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, na Revista do Ministério Público( RMP), nº 14, de Abril-Junho 1993.
2. “Corrupção: para uma abordagem jurídica e judiciária”, pequeno estudo de 16 páginas, da autoria de José Souto de Moura, na mesma RMP, de que se transcreve uma pequena frase: “ ver e calar parece ser assim a regra de ouro para quem quer ter uma vida relativamente tranquila”.
3. “Sobre o modelo de hierarquia na organização do MºPº”, 20 páginas densas de referências ( citações de Edgar Morin oblige) da autoria de José Narciso Cunha Rodrigues, na RMP nº 62, de Abril- Junho 1995 e de que também se cita uma pequena frase: “Naquela época,[1978] as tendências de opinião oscilavam, quanto à justiça, entre a imersão nas ideologias e a defesa de um espaço de neutralidade sustentado, algumas vezes, por afirmações cegas ou insensíveis ao processo histórico “. Leram bem : “processo histórico”!
4. “Notas sobre o Conselho Superior da Magistratura”, 10 páginas muito interessantes da autoria de Orlando Afonso ( juiz de direito), no mesmo número da RMP. Posso dizer a frase? Aqui vai: “Durante o regime de Salazar/Caetano, ou seja, durante a vigência da Constituição de 1933, o poder judicial era tido como um dos poderes soberanos do Estado; porém, a sua independência era apenas uma independência formal e material dada a inexistência de intervenção directa a nível de decisão. No entanto a magistratura era orgânica e economicamente dependente do poder executivo”. Não há aqui “fascismo”. Há regime de Salazar/Caetano- e muito bem.
5. “Sobre as decisões interpretativas do Tribunal Constitucional”. Mário Brito ( juiz jubilado do STJ e do TC) escreve 18 páginas de referências legais e jurídicas sobre o âmago da intervenção do TC , nas fiscalização das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade. A frase neste caso, é para resumir o assunto: “A questão- repete-se- está em saber se, considerada inconstitucional na decisão recorrida uma norma, em determinada interpretação, pode o T.C. julgá-la não inconstitucional noutra interpretação e impor essa interpretação ao tribunal recorrido.
6. “Corporativismo, judicialização da política ea “crise da justiça em Portugal” , 16 páginas sociologicamente puras da autoria de Pedro Coutinho Magalhães, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, in RMP, nº79, de Julho-Setembro de 1999. Frase chave: “Os cientistas enfrentam frequentemente um dilema de difícil resolução. A nossa preocupação com a fiabilidade das descrições e explicações que damos da realidade social afasta-nos por vezes de tratar aquilo que nela é incerto e mutável, ou seja, aquilo que é verdadeiramente interessante”. Indeed!
7. “Divisão de poderes e constitucionalismo:, virtudes e dilemas”, na RMP, nº 73, de Janeiro-Março de 1998, José Eduardo Faria, brasileiro, professor de Direito na Universidade de S. Paulo, apresenta-nos em 9 páginas, três dilemas das sociedades contemporâneas. Um deles:”Quanto mais o direito positivo multiplica as suas normas e leis específicas para intervir “tecnicamente” na dinâmica de uma sociedade heterogénea e complexa, menor seria sua coerência interna e soa organicidade; o que revelaria, com o tempo, sua progressiva incacidade de dar conta das tensões e dos conflitos sociais a partir de um conjunto minimamente articulado de “premissas decisórias”.
8. “ Dignidade da Pessoa e processo judicial”, um artigo de 15 paginas da autoria de Souto de Moura, na RMP nº 70 de Abril-Junho de 1997. Uma passagem, saborosa e actualíssima: “ Não há acesso à verdade sem contraditório e não há justiça sem distanciamento emocional. O tribunal da opinião pública, tal como aliás os tribunais populares, são pouco propensos a assegurarem aquelas condições. A isto acresce que, tantas vezes, a liberdade de informar é escrava duma lógica de mercado.”
9. “Tribunais-poder e responsabilidade”, numa dúzia de páginas da RMP nº 80 de Outubro-Desembro de 1999, Laborinho Lúcio, repisa conceitos já escritos e no mesmo estilo que procura demonstrar que a aplicação das leis é mais do que um silogismo ou até mesmo uma tarefa interpretativa balizada e rígida. A frase escolhida: “Assim, entre as linhas estruturantes do sistema actual a manter, cumpre destacar, como princípio, a independência dos tribunais, e como soluções de estratégia, a pluralidade de justiças, a separação das magistraturas , a hierarquia e a autonomia do ministério Público e o auto-governo das magistraturas.”
10. Do mesmo autor e publicado na Revista portuguesa de Ciência Criminal, dirigida por Jorge Figueiredo Dias, nº2 de Abril-Junho 1991, um artigo sobre a mesmíssima temática e intitulado“Subjectividade e motivação no novo processo penal português”. Em 16 páginas
11. “Neutralidade ou pluralismo na aplicação do Direito? Interpretação judicial e insuficiência do formalismo”, artigo de 24 páginas, publicado na RMP nº 65 de Janeiro-Março 1996, da autoria do magistrado espanhol, Perfecto Andrés Ibáñez. O artigo pretende, “reflectir sobre o tipo ou a qualidade da aproximação que o texto da lei permite hoje ao juiz-intérprete.”
12. Para terminar esta pequena resenha, um artigo de 44 páginas pelo Mestre Figueiredo Dias, publicado no nº 1 da sua Revista Portuguesa de Ciência Criminal, de Janeiro-Março 1991. O tema? “Sobre o estado actual da doutrina do crime- 1ª parte, sobre os fundamentos da doutrina e a construção do tipo de ilícito”. Artigo fundamental e que se consigna à atenção de quem se cuida por estas matérias.

Nesta temática, há mais sítios por onde buscar leituras. A Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, publica um Boletim da FDUC, com edições periódicas. A revista, fundada em 1914 e actualmente dirigida por uma comissão redactora composta de algumas das nossas sumidades em direito ( Almeida Costa, Ehrahardt Soares, Castanheira Neves, Lopes Porto e Faria Costa), chega a nichos de mercado e nem sempre de opinião pública. Tal como as outras, aliás. Por exemplo, a revista da Associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa.

Assim, aqui ficam estas singelas referências, para resumir algo que ao longo de mais de dez anos se produziu em tom teórico e sintético, sobre a aplicação do Direito, pelos tribunais e suas problemáticas complexas.
A teorização destes temas e destes assuntos, assenta primordialmente na qualidade de quem escreve. A temática do direito penal, complexa e estudada pelos teóricos, neste campo, estrangeiros, ensina-se em princípios básicos, que se transmitem de ano para ano e década para década, pelos estudiosos e docentes do Direito.
A compexidade do tema, remete para um compreensivo desinteresse, quem depara com apresentações populares de certas ideias desgarradas e é a esse nível que se poderá compreender a observação de Pedro Soares de Albergaria, num comentário no blog GLQL e que se deixa em nota, abaixo. Como aliás se remete anotação para o comentário de Guilherme, à primeira entrada escrita, neste blog.
A inteligência de quem estuda, ensina e transmite estes assuntos, refere-se a um quadro de ensino que , no dizer de Marcelo Caetano, “ na verdade o importante para a formação do homem de Direito não é tornar-se reportório vivo dos diplomas vigentes, mas possuir os quadros científicos, conhecer os princípios dominantes, ter bem presente uma nomenclatura.”

Nota de PSA:
Caro José, também não tenho resposta certa, mas há algo que é facilmente constatável: o alheamento dos doutrinadores das questões que vêm sendo debatidas em matéria penal não será imputável, apenas (e talvez nem sobretudo), a esses doutrinadores. Um dos problemas que nos aflige (e porventura, ainda, em menor medida do que noutras latitudes) é o da progressiva e autónoma intervenção dos decisores políticos e de organizações representativas da sociedade civil (associações representativas de vítimas, de minorias, etc.) nas soluções legislativas em matéria penal, tudo em prejuízo da influência de jurisconsultos e dos estudiosos, dos verdadeiros estudiosos, destas coisas. Os projectos relativos às leis mais importantes já não são encomendados a grandes especialistas, mas a gabinetes ministeriais de boys e, quando se trata de ouvir quem quer que seja, ouve-se, antes que tudo, aquelas organizações. Ninguém quer saber de teóricos e assumiu-se (erradamente) que nem tudo o que é bom na teoria funciona na prática. Daí o modo errático de legiferar, ao sabor da espuma dos dias, daí a “política criminal à flor da pele”. É natural que os académicos, habituados a uma discussão serena e séria sobre tais assuntos se afastem também cada vez mais. Por isso o alheamento de que fala é biunívoco: os políticos não querem saber dos jurisconsultos e estes não querem participar em discussões que alinham, não raro, por um modo muito superficial de abordar os temas.
Muitos já fizeram o diagnóstico da situação. António de Araújo, por exemplo, identifica o alheamento a que o José se refere como um sintoma de um ambiente populista, que invade o sistema de justiça penal, aqui e lá fora (v. “Do Populismo Penal ao Mistério de Carcavelos”, na revista Atlântico, 2, 2006, p. 22 e ss., interessante artigo de opinião que reproduz, em parte, o que já havia opinado em livro – Abuso Sexual Contra Menores – Entre o Direito Penal e a Constituição, 2005, p. 287 e ss.). Estou de acordo.

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