domingo, 29 de abril de 2007

Os sons da Página Um

Imagem do estúdio da Rádio Renascença, em Abril de 1975, por ocasião da greve que aí começou e se estendeu por várias semanas. A imagem é retirada da revista Flama de 7.3.1975, que contém duas páginas sobre o assunto e a opinião de João Alferes Gonçalves.

Com o advento da revolução em 25 de Abril de 1974, um dos sectores que sofreu um abalo de réplica, foi o do ensino. No ano de 1974, quem acabava o então 7º ano do liceu, hoje 11º. não conseguiu prosseguir para as universidades, porque estas tiveram um ano sabático, por efeito da Revolução. De repente e de um ano para o outro, a população estudantil, passou para...o dobro e 27 mil estudantes a quererem entrar para o ensino superior público, causava um engarrafamento monumental que a Revolução não sabia lidar, tendo sido suspensas as matrículas, no final do Verão. Durante esse ano, de vida estudantil nula, o que podia fazer um jovem, enquanto aguardava a matrícula que só viria no ano seguinte? Entre muitas coisas, ouvir música era uma delas.
No capítulo musical, no Portugal de Abril de 74, o meio mais comum e usual de divulgação do que então se produzia em disco, era o rádio em frequência modulada.
Os programas disponíveis, deve dizer-se, eram vários e de muito boa qualidade. A música que então se produzia, seguia a par. Qualquer pessoa atenta, facilmente ouviria por cá o que por lá por fora se produzia, na música popular, ainda que com um intervalo de tempo, às vezes medido em meses, muitas vezes encurtados pelos voluntários que enviavam, “lá de fora”, os discos que por cá ainda não havia. Os correspondentes da BBC, parece que também ajudavam, como era o caso de António Cartaxo, hoje a apresentar música erudita na Antena 2.
Programas como O Espaço 3P (que englobava a Boa Noite em FM, a Banda Sonora e a Perspectiva ) , o Em Órbita 2 e o programa Dois Pontos, no Rádio Clube, eram apresentados por connoisseurs entusiastas. João David Nunes, Fernando Balsinha, Jaime Fernandes e outros, passavam muitas vezes álbuns, LP´s , integralmente, sem interrupção sequer para publicidade, nos seus programas que convidavam a acoplar ao rádio, o gravador de cassetes que então começavam a difundir-se maciçamente.
Álbuns antigos e recentes, passavam as ondas com a facilidade com que viriam lá de fora, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, trazidos por carolas amigos dos locutores que muitas vezes os convidavam para apresentarem as raridades ou novidades.
Por mais do que uma vez, foi possível ouvir os Grateful Dead, Leo Kottke, Doc Watson ou Frank Zappa, trazidos por um João Filipe Barbosa ou outro curioso amador que generosamente apresentava a obra prima que ainda não tinha sido ouvida neste lado do Atlântico.
Claro que era sempre possível sintonizar em onda curta o programa da BBC, Top Gear, de John Peel e apanhar numa qualidade sonora menos do que sofrível, os últimos acordes da batida do reggae de Bob Marley que em 1974 ainda eram desconhecidos por cá, a não ser através da interpretação de Eric Clapton em I Shot the sheriff. Quem diz Bob Marley, pode dizer os alemães Can ou o inglês Roy Harper, por cá amplamente divulgado por Jaime Fernandes e João David Nunes, no Dois Pontos.
As novidades apresentadas à noitinha, no Top Gear de John Peel, eram mesmo isso, porque se apresentavam na terra onde eram produzidas.
Por cá, a prática editorial da Rádio Triunfo ou da Valentim de Carvalho demorava meses a produzir sons agradáveis ao ouvido de quem já os conhecia, pela leitura de jornais e revistas de especialidade, como os ingleses New Musical Express e Melody maker, a francesinha Rock & Folk e a americaníssima Rolling Stone.
Além disso, o resultado sonoro, graficamente transcrito em Portugal, saía geralmente um pouco apagado, mesmo nas capas mais desmaiadas e de cartão mais fraco do que o americano de várias camadas e cheiro específico.
O vinil original, importado geralmente de Inglaterra, era mais caro e aparecia mais tarde -quando aparecia. A visita a certos locais de culto, tornava-se obrigatória, para descobrir as peças de colecção. Em Braga, a Sonolar, mostrava discos, trazidos pela Valentim de Carvalho e apresentava nos escaparates, uma edição rara do último disco que os Beatles produziram, Let it Be, com um livreto de explicações das sessões de gravação, com imagens a cor, em fundo preto, inserido numa espécie de caixa em cartão que hoje vale muito mais, em leilões na ebay.
Assim, o rádio era o meio ideal de tomar a novidade dos sons do momento e foi assim que ouvi as melhores bandas do rock progressivo inglês, como os Gentle Giant, os King Crimpson e os Van Der Graaf Generator, nos programas nocturnos de Fernando Balsinha.
De igual modo, a audição atenta e repetida de Apostrophe e Overnite sensation de Frank Zappa ou os Tangerine Dream e outro rock alemão, fixaram preferências para sempre.
O folk-rock inglês também se apresentava com o cuidado dos Fairport Convention e dos Renaissance ou Steeleye Span e a música country americana, tinha honras de primazia, no programa Dois Pontos de Jaime Fernandes, onde se ouviam verdadeiras raridades nos tempos de hoje. Descobri os Nitty Gritty Dirt Band, os Eagles, os Flying Burrito Brothers e todo o country rock que conta, nos programas Dois Pontos e estas audições intensivas, ocorreram em toda a metade dos anos setenta, com entrada ainda nos oitenta.

Porém, o que iniciou toda esta modalidade de audição seguida de gravação ( ainda guardo em cassetes da Basf gravações dessa época, de um mono esplendoroso, mas de dinâmica apagada) foi o programa da Rádio Renascença, Página Um.
O programa que ouvi, no início dos setenta, ainda era apresentado por José Manuel Nunes que foi para a Deutsche Welle, antes do 25 de Abril de 74, segundo julgo.
Em substituição da voz timbrada, mas um pouco nasalada, apareceu outra voz que se identificava como Luís Filipe Martins. O mesmo que agora, apresenta o blog LPM e que durante o ano sabático de 74/75, apresentou o programa por vezes interrompido com greves prolongadas ( De meados de Fevereiro de 1975 até 5 de Abril do mesmo ano, por exemplo) e por ocasião dos desenvolvimentos dramáticos do PREC que foram vários, aliás.
O primeiro programa que guardo vivamente na memória, apresentou Maria Maudaur e um disco desconhecido por cá que trazia Midnight at the oásis, um hit de 1974. O Lp, trazia outras missangas de luxo da música country rock ligeira e apoiado num naipe de músicos de encher os ouvidos de maravilhas sonoras. O solo de guitarra do single, tocado por Amos Garrett, fixava os ouvidos atentos durante dias, quando a música se repetia, o que era timbre do programa e ajudava a formar gosto musical.

Na emissão de 31 de Dezembro de 1974, o programa, à semelhança dos demais, nesse tempo, ocupou a hora e meia disponível, na retrospectiva da música passada durante o ano, com a locução muito sóbria e sustentada, de Luís Filipe Martins ( durante o mês de Agosto, seria Artur Albarran, que me provocava um efeito de estranheza que demorou a habituar).
O alinhamento desse dia, foi o seguinte:
Logo a seguir à introdução batucada do Pop Five, feita apenas de bateria e baixo ( que agora descobri por revelação do apresentador, ser diferente do original que se pode ouvir em disco), imediatamente antes do “Hey” que precede a entrada dos metais, o anúncio do programa- Página Um!- não esperava mais nada e introduzia a música dos Sparks, Amateur Hour, do álbum Kimono my house. Este disco ainda hoje é um dos meus favoritos da música popular, com lugar cativo nos dez mais interessantes de sempre.
Em seguida e com aviso sonoro de que se tratava de um super grupo rotulado como tal por ter elementos dos Free e King Crimpson, entrava Bad Company, para se ouvir The way that i choose, um tema lento do primeiro LP , com a menção à circunstância de ter sido divulgado no programa juntamente com os Sparks, os Cockney Rebel e os Brownville Station ( ou seja alguns expoentes do que se convenciou chamar glam-rock, com David Bowie à cabeça).
Em seguida e sem aviso, a música de Victor Jara, Levantate e mira la montaña e ainda Chunguito Guerrillero ( a música progressista chilena era um must, no programa e por lá passaram nesses meses de brasa política, outros como Claudina e Alberto Gambino e ainda outros nomes da chamada música de intervenção, como Carachu, Soledade Barvo, Quillapaiun, Mercedes Soza e Los Cañas. As editoras deste tipo de música tinham nomes domo Expression Spontanée e Les Chants du monde. Em 1975, no auge do PREC, passavam na Página Um, grupos como Groupement Culturelle Renault, com apelos explícitos às lutas dos trabalhadores daquela fábrica de automóveis francesa e ainda Dominique Grange, uma cantora com temas como “ À bas l´état policier e Nous sommes les nouveaux partisans”, tudo canções “que ficaram de Maio de 1968”. Os espanhóis também se encontravam representados por Juan Manuel Serrat, por exemplo. Na música popular portuguesa, era presença constante, e então bem-vinda, a música do Grupo de Acção Cultural Vozes na Luta, com temas como Alerta; Em vermelho, em multidão; A cantiga é uma arma, etc ).
Depois do espanhol dos chilenos, um instrumental de música celta, de Alain Stivell. Os instrumentais na Página Um, eram uma pequena maravilha de inventividade na escolha. Lembro-me de um do Eumir Deodato ,brasileiro radicado nos EUA e um Santana com o título Promise of a fisherman que ainda ouço do modo como então ouvi, como lembro os do Som Imaginário, também brasileiros e do álbum A matança do porco. Em todos os programas, a meia dúzia de músicas cantadas, seguia-se o instrumental da praxe, sempre muito bem escolhido e que definia um estilo de programa que nunca mais ouvi.
Logo depois, a retoma do disco de Bob Dylan, Planet Waves da etiqueta Asylum ( uma constante do programa era a indicação concreta da etiqueta de gravação original que nessa altura eram muitas e variadas, ao contrário de hoje, poucas e concentradas) que se anunciou como divulgado juntamente com o de Joni Mitchell ( na altura, Court And Spark que contém Help me). Lembro a referência constante à Atlantic, como etiqueta, e a apresentação de um disco colectânea de temas dessa editora, chamado The Age of Atlantic.
A seguir à menção da voz feminina de Joni, surge a de Sandy Denny, num tema estrondoso que nunca mais ouvi do mesmo modo que ouvia na Página Um: Solo, do LP Like an old Fashioned Waltz, da etiqueta Island. A melhor versão que se aproxima desse som original que ficou gravado para sempre, ainda é a última gravação remasterizada do cd, de 2005, mas ainda assim, fico sempre com dúvidas se será melhor do que o som monofónico do meu velho Grundig Melody, que aliás já não se fabrica, mas ainda funciona. A menção obrigatória à divulgação juntamente com Maggie Bell, serve para introduzir mais um estrondo sonoro de alta voltagem impressiva: Rory Gallagher, e o tema Tatto Lady, tirado de um disco ao vivo no festival de Reading ( ainda não consegui esse disco, e de Rory Gallagher tenho quase tudo, incluindo o LP que a Página Um passou depois, Irish Tour´74 e que me impressionou de tal modo que ainda ouço os acordes da Stratocaster eléctrica e da Martin acústica reproduzidos no rádio, sempre que me ouço As the crow flies baby…
A seguir a um Gallagher altamente energético e bluesy, um coutry-rocker estilo inglês, radicado nos EUA: Graham Nash e um tema de um disco fabuloso: Prison Song do LP Wild Tales. O Lp é outro dos que marcam a década, juntamente com os produzidos pelos CSN&Y grupo de que aliás, fazia parte.
A seguir à harmónica de Nash, a voz em português do Brasil, de Maria Betânia e o anúncio da apresentação, durante o ano, de Drama, Terceiro acto, que engata no francês bem pronunciado de Maxime Le Forestier e o tema nostálgico Si tu était née en Mai. O cantor francês, actualmente um completo desconhecido por cá, foi com Serge Reggiani e Georges Moustaki, para não falar em Leo Ferré e Jacques Brel, belga, a voz da língua francesa nas canções do rádio. Hoje, há Carla Bruni e mais ninguém. O tempo de Françoise Hardy já vai longe e já passou, mas as suas canções de sussurro permanecem uma beleza oculta, tanta como a que então a cantora apresentava como pessoa.
E vem depois uma sessão de música portuguesa, de intervenção. Primeiro, Mário Viegas a dizer poemas de um ep. Depois, Sérgio Godinho e um dos seus melhores discos, À queima-roupa e em seguida, José Afonso no Coro dos Tribunais.
Para fechar a cota de música portuguesa sempre presente no programa, e com importância acrescida, o locutor refere que “em Outubro a Página Um assistiu aos ensaios de um grupo português que se viria a tornar a revelação do ano: a Banda do Casaco. Passa o tema Lavados, lavados sim, uma pequena maravilha que me deu a conhecer a grande maravilha da música do grupo, ainda hoje, talvez o melhor de sempre da música popular portuguesa. A Página Um, nos meses a seguir, passou constantemente temas do LP de António Pinho e Nuno Rodrigues.
Para uma mudança completa de ritmo e sentido, o som reggae de Ken Boothe e GTMoore, com Knocking on Heavens Door. O reggae, nessa altura, era uma absoluta novidade em Portugal e até na Europa e só um par de anos mais tarde, com o advento do Punk se começou a dar mais atenção ao estilo jamaicano de tocar. Só no final do ano seguinte, com o espantoso LP ao vido de Bob Marley, At the Lyceum, se começou a ouvir reggae com alguma frequência modulada, em Portugal.
Para seguir, tocou então Gary Chesterton, um australiano que cantava I get a kick out of you como mais ninguém o fez: de orquestra de violino de bolso, numa toada swingante que vale bem a versão de Sinatra. É um disco perdido, mas conservo a gravação, feita anos mais tarde, também da rádio, neste caso espanhola. O Lp, esse, continua a figurar na lista dos mais procurados.
Cat Stevens que nesse ano tinha lançado Budda and the chocolate box, foi então convocado e em seguida outro solo-singer ( expressão várias vezes ouvida no programa), Clifford T. Ward, um cantor que estivera pouco tempo antes em Lisboa, a cantar Jane e cujos álbuns, valem alguns de Cat Stevens, o que não é dizer pouco. Foi na Página Um que ouvi, fixei e ganhei vontade de coleccionar depois, a música do cantor inglês, já desaparecido.
Para findar o programa, Leo Sayer, leve, mas novidade fresca da época, com One man band.

Esta retrospectiva de 1974, permite perceber algumas coisas que faltam na rádio actual:
Canções de qualidade, mistura de géneros, sobriedade na apresentação e total respeito pelo ouvinte e ainda competência e conhecimento do apresentador. O estilo do programa, simples, era de uma eficácia, a meu ver espantosa. O mistério da apresentação da música gravada, nessa época, desconhecida e apresentada como novidade a reter, mantinha-se com o elevado interesse que a própria produção musical da época assegurava.
Durante o ano seguinte, 1975, a Página Um, apresentou alguns dos melhores discos de sempre da música popular de várias expressões, então produzida.
Lembro e destaco, no panorama internacional, o LP dos Led Zeppelin, Physical Grafitti, cuja audição, hoje em dia, da batida forte de Kashmir ou a melodia de In the light, parece-me que nem soam tão a preceito como então as ouvia. O disco passava dia sim, dia sim, com temas variados e fixou o ritmo do programa nos primeiros meses de 1975.
Lembro também a primeira vez que foi apresentado o LP Blood on the tracks, que anotei ter sido em 18 de Fevereiro de 75, com o tema Idiot Wind, um dos que menos gosto, mas seguido de Lily Rosemary and the jack of hearts que ainda hoje evoca o programa, para mim. Lembro Joe Cocker e I can´t stand a little rain, para ouvir Put out the light. Lembro a passagem da banda Sonora de Tommy e os Barclay James Harvest que embora sendo os Moody Blues dos pobrezinhos, encantavam-me com Everyone is everybody else e mais tarde, Titles. O disco ao vivo deste grupo, de constitui uma das referências do programa. De Bob Dylan, passou entretanto, no ano de 75 o LP Before the Flood, com um efeito impressionante na minha visão de Bob Dylan que aguentou até aos dias de hoje, pois o cantor não voltou a fazer melhor música do que nesse ano.
O primeiro single dos Queen, sheer heart attack, não me impressionava tanto como por exemplo, os Sparks de Propaganda, com Thanks but no thanks e principalmente os Roxy Music com Prairie Rose, do LP Country Life. Ainda hoje, o som que procuro nesse disco é a memória desse tempo da Página Um. Como acontece com o tema a solo Somoke gets in your eyes , de Brian Ferry.
Os Supertramp não me impressionaram com a voz de falsete de Crime of the Century, porque preferia ouvir Sloth, dos Fairport Convention, ao vivo.
Em 14 de Fevereiro, João Filipe Barbosa foi ao programa apresentar vários temas de discos dos Génesis que viriam a Portugal nos dias 6 e 7 de Março seguinte. Estes concertos de grupos que nunca por cá apareciam, eram motivo de grandes conversas e passagens de músicas, na rádio desse tempo.
Algumas músicas que então ouvi, continuam por ouvir em cd ou mesmo LP. É o caso de Stage door´s Johnny de Claire Hamill. Mas Michael Murphy e o LP Nobody´s gonna tell me how to play my music, canta por cá em prensagem americana, como deve ser e numa sonoridade muito próxima da memória auditiva.
Ao lembrar-me de Maxime Le Forestier a cantar, Mourir pour une nuit, julgo que nenhuma outra música se aproxima, em intensidade, da minha intimidade, como essa. E foi na Página Um que a ouvi a primeira vez.
Há poucos meses, em Barcelona descobri Jonathan Edwards, um americano que durante estes anos todos me perseguiu a atenção para arranjar a versão que tinha ouvido no programa, em 1975. Quando li, nas notas de contracapa, que o disco Lucky Day, tinha Let the good times roll, de 1974, era ao vivo e fora gravado com a companhia do grupo Orphan, percebi que tinha encontrado uma pepita sonora que julgava perdida para sempre. Tal ainda vai suceder com o LP de Johnny Nash, Celebrate Life, um dia destes, espero. Como espero ouvir os Splinter de Costafine Town. Ou os Snafu de Situation Normal. Ou ainda a colectânea original e esgotadíssima que se chamava The age of Atlantic, com temas dos Yes dos primórdios ou dos Beach Boys, por exemplo, e que nunca se ouvirão da mesma maneira se não for nesse mesmo disco.
A música portuguesa dos cantores de intervenção, também foi principalmente na Página Um que a ouvi como deve ser. Fausto, Pró que der e vier; Luís Cília, José Mário Branco do Soldadinho e até Sérgio Godinho dos dois primeiros LP´s e dos seguintes, foram alguns dos autores cuja audição encontrei no programa e nunca mais deixei de ouvir.

A programa de rádio Página Um dos setenta, apresenta-se para mim, do mesmo modo que a canção de Milton Nascimento, Saudade dos Aviões. Nela, Milton canta que “cerveja que tomo hoje é apenas em memória dos tempos da Pan Air”, e eu canto que uma boa parte da música popular que ouço hoje, é apenas em memória dos tempos da Página Um de outros programas que ma apresentaram em primeiro lugar e toda a gente percebe a beleza que existe nos amores primeiros. De tal modo que no disco Temporada de Verão, de Caetano e Gilberto Gil, ao vivo na Bahia, se cantava no Verão de 74 que “o sonho acabou” e “ felicidade foi embora”.
É isto a nostalgia? Talvez. A nostalgia da qualidade que não se recuperou, em trinta anos, porque os produtores aparentemente perderam a receita.
Ouvi recentemente um disco de Neil Young, gravado em 1971, no auditório Massey Hall no Canadá. O disco é totalmente acústico e tocado numa simplicidade desarmante dos acordes que raramente chegam à meia dúzia, numa viola Martin e por vezes num piano.
O disco deveria ter saído depois de After the gold Rush, um monumento da música popular americana, e antes do disco Harvest, de 1972. A opção de Neil Young, fê-lo republicar o disco apenas agora. A sua audição recupera a beleza da voz de Young e a simplicidade maravilhosa da sua música acústica, mas perde algo substancial que havia nesse tempo: a novidade da descoberta sonora, tornada complexa pelo tempo que se vivia, de juventude e de descoberta de outras realidades, na a vida como ela pode ser vivida.
Será esse o segredo do templo perdido da sabedoria? A ingenuidade e a inocência, trazem-nos felicidade ou preparam-nos apenas para a verdadeira noção do que significa viver?
A experiência musical, seja ela a induzida pelos sons da música popular ou da música mais erudita, sublime e inatingível, ajuda a partilhar momentos de felicidade espiritual e funciona como mecanismo indutor de bem estar, em quem se preparou para tal. Mais do que isso, será pedir ou esperar demais.

Estúdios da Rádio Renascença, com elementos das Forças Armadas, em Abril de 1975, para manter a segurança. Imagem da mesma Flama.

PS. Este postal é uma resposta ao blogger Luís Paixão Martins o apresentador da Página Um, em 1974-75, no período aqui mencionado e que amavelmente manifestou sua vontade em conhecer o "José" do blog Grande Loja do Queijo Limiano. Um dia destes, pode ser.

Aditamento em 1.5.2007, às 22:10:

Luís Paixão Martins, em modo de resposta às perguntas que coloquei no seu blog, e que muito agradeço, esclarece algo interessante para quem sempre quis perceber como funcionava o programa Página Um, que apresentou em 1974-75. Em comentário, explica:

Coisas de que ainda me lembro: 1. Na altura,as rádios privadas tinham os seus horários alugados por vários produtores independentes. O Página 1 pertencia a Homero Cardoso que desempenhava funções comerciais na Revista Flama e veio a ter um papel preponderante na editora Assírio e Alvim. 2. Durante a maior parte do período em que o programa foi emitido o seu realizador e apresentador foi José Manuel Nunes, que veio a ser presidente da RDP nos anos 80/90. 3. O Adelino Gomes foi, também durante alguns anos, o responsável pelas reportagens do programa. 4. Da equipa, como locutores e realizadores, fizeram ainda parte o Fernando de Sousa (hoje na SIC em Bruxelas) e o Artur Albarran (que trabalhou na RTP e TVI), em períodos relativamente curtos (férias e coisas assim). 5. O primeiro realizador do programa, embora por pouco tempo, não foi, no entanto, nenhum destes. Salvo erro ou Jorge Schitzer ou Cândido Mota. 6. José Videira assegurou a operação técnica do programa durante muitos anos e, antes dele, salvo erro o Moreno Pinto. 7. Os discos chegavam em 1ª mão ao Página 1 essencialmente devido à colaboração de Fernando Tenente, um entusiasta musical que vivia no Porto e trabalhava na Marconi. Além disso, como o programa era muito popular (não havia TV e a Rádio de final de tarde era muito ouvida), as editoras discográficas privilegiavam o programa. 8. Não havia “play-lists”. A selecção musical dependia do gosto e do critério dos locutores/realizadores. Sempre houve (eu, antes de trabalhar no programa, fui seu ouvinte) uma mistura de géneros. Muita música de expressão anglo-saxónica e uma selecção de temas rotularíamos hoje de “world music”. Além disso, a música portuguesa de qualidade estava sempre muito presente. Foi o Página 1 quem lançou, por exemplo, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto...9. Existe uma razão para tudo isto, mesmo antes do 25 de Abril. Ao contrário das outras emissoras, na Rádio Renascença (por pertencer à Igreja Católica) não havia censura oficial. Podíamos, por isso, trabalhar com muito mais liberdade que os nossos colegas das outras estações. 10. Foram os Pop Five que entregaram a “versão” indicativo do “Page One” da forma como era tocada na Rádio. O registo comercial tem a etiqueta Orfeu. Lpm PS: O 1º LP que tive emm quadrifonia tinha o Mockingbird.

É claro que estas lembranças, suscitam novos comentários que me ocorrem.

Lembro-me de em 1975, logo após o 11 de Março e das nacionalizações, em pleno PREC, alguém no programa questionar vivamente a problemática dos "produtores independentes", como se fora algo de esquisito e a eliminar, no novo país em construção. Lembro-me ainda da intervenção de Fernando Tenente como colaborador e do nome de José Videira, mencionado no programa. Lembro-me de ouvir as intervenções de Adelino Gomes, durante o dia 11 de Março, e de o ver numa reportagem inesquecível e que poucas vezes se viu na RTP.

Lembro ainda de ouvir Sérgio Godinho nos seus primeiros LP´s e principalmente Fausto. Lembro de ouvir Luís Cília "contra a ideia de violência, a violência da ideia", disco perdido da nossa MPP.

Fico a saber a razão da publicidade do programa, nas páginas da Flama, o que sempre me intrigou, porque não a encontrava noutro lado: o produtor do programa era também responsável pelo sector comercial da revista. A revista pertencia à União Gráfica, mas aí trabalhavam os futuros jornalistas do futuro O Jornal, por exemplo.

Assim, fica aqui encerrado ( temporariamente) um capítulo sobre o rádio que ouvia, enquanto jovem adolescente. O meu muito obrigado a Luís Filipe Paixão Martins.

A seguir, os discos de referência, de sempre e em estilos variados.